quarta-feira, 14 de março de 2018

DESPINOQUIANDO - CAIO SILVEIRA RAMOS




Recebi a mulher pelo correio, em várias partes separadas, e não reconheci aquele corpo. Eram pacotes de todas as formas, sem remetente. Primeiro veio uma perna, mas não era de madeira, plástico ou borracha. Era uma perna bonita, forte, bronzeada, bem torneada, de carnes rijas e ossos grandes. Mas era só um membro - eu andava desiludido por causa de um caso desfeito - e acabei jogando aquela perna na área de serviço.



No dia seguinte, quando fui colocar a roupa na máquina de lavar, vi que da perna tinha brotado um pé e um lado da nádega. Achei bonito, toquei, senti um friozinho na espinha, mas foi só. À noite, quando cheguei do serviço, encontrei mais um pacote na portaria do prédio: dentro, um seio firme, voltado para o alto, o mamilo rosado e atrevido. Mas na sala me deparei com duas pernas já formadas daquele pedaço de corpo abandonado pela manhã. Andavam tontas, sem jeito, aos trancos. Por fim, parecendo cansadas, buscaram o sofá. A nádega agora completa se sentou e as pernas se cruzaram impacientes, os pés se mexendo. Tentei chegar perto, olhei interessado, mas a frente não estava pronta, era apenas pele lisa, sem sexo. Me aproximei, as pernas se retraíram, depositei receoso o seio recebido na ponta oposta do sofá e fui me deitar. Que aqueles membros se entendessem.


De manhã, um belo corpo de mulher, sem braços e sem cabeça, dormia encolhido de frio no sofá. Fui até ele, cobri-o com uma manta de lã e saí na ponta dos pés para o trabalho.


Durante o dia fiquei ansioso, queria que o tempo passasse logo: que parte receberia? E à noite o pacote estava lá: era uma cabeça, com olhos fechados, a boca bem-feita, o pescoço delgado e os cabelos longos de mel e melado. Em casa, o corpo esperava, os braços nascidos, a mesa posta, a janta cheirosa. Sorri, quase pedi um abraço, mas me intimidei: apenas ofereci a cabeça recebida pelo correio. Ela pereceu envergonhada, saiu correndo com o presente nas mãos e se trancou do quarto de empregada. Pensei em bater na porta, saber se ela precisava de alguma coisa, mas achei melhor deixá-la à vontade, talvez se mirasse no espelho. Resolvi jantar, comida soberba. Depois tirei a mesa, lavei a louça, deixei um pratinho para ela sobre o fogão e fui de novo até o banheirinho, encostar o ouvido na porta. Nenhum barulho, nenhum soluço. Fui dormir.


No outro dia encontrei a mesa do desjejum arrumada, suco de laranja, café cheiroso, torrada quente com manteiga derretida, mamão cortado em cubos. Andei pela casa: sobre o fogão o prato não estava, virei a maçaneta do banheirinho, a porta trancada. Lá dentro, um suspiro, me desculpei, desculpe, desculpe, você precisa de alguma coisa? Silêncio. Eu não tinha fome, mas pensei que ela se ofenderia e acabei comendo um pouco de tudo. O café era perfeito. Ajeitei a mesa para ela, pensei em perguntar se queria alguma coisa da rua, mas me envergonhei. Saí.


No serviço não consegui me concentrar, inventei uma dor de cabeça e corri para casa. O porteiro do prédio me estendeu o pacote. Subi apressado, o coração chegando na frente, vendo a mesa pronta, o jantar cheiroso, ela trancada no banheirinho. Olhei o pacote do correio, não sabia se poderia abrir, não era para mim. Pois não era? Não era o meu nome que estava descrito como destinatário? Abri. E em minhas mãos se abriu o sexo, novo, resplandecente e nu. Levei-o até o rosto, me misturei aos pelos finos, toquei meus lábios nos dela, mas eram frios e secos. Recoloquei-os no pacote, jantei, repeti o ritual do dia anterior e sobre o fogão deixei um prato quente e seu presente ainda morto. Fui deitar, fechei os olhos procurando-a em mim. E acabei exausto.


De madrugada ela me acordou com um beijo. O rosto perfeito, o corpo criado, faminto, ansioso. Ficamos ali trancados, dias e dias, esquecidos. Às vezes um de nós ia para a cozinha, preparava um encanto, fazia o outro revigorar pra se esgotar de novo. O telefone tocando, nós dois rindo do mundo perdido lá fora, gulosos do sonho do tempo refeito lá dentro.


Um dia voltou pro quarto rindo, a comida está acabando, vou ter que comer seus olhos com sal. Percebi que era tempo de voltar para o trabalho, dei-lhe um beijo, prometi, vou comprar uns vestidos pra você passear. No escritório, a secretária e o estagiário estavam assustados, onde o senhor andava? Seus clientes estão nervosos.


Inventei desculpas, fiz ligações, dei um aumento para o estagiário que me cobriu no andamento dos processos e disse amanhã eu volto. Fui numa loja e lotei o carro de presentes: roupas, sapatos, perfumes, agradinhos. Entrei em casa, ela na frente da TV, fascinada pela novela, cheiro de queimado na cozinha. Desliguei o fogo, meu amor, meu amor, tome cuidado, você poderia ter se machucado. Mas ri. Ela riu também, pediu desculpas, e agora? Trouxe as compras para dentro da sala, fizemos comida chinesa congelada e depois ela desfilou nos vestidos novos.


Não sei qual é o seu nome, meu amor.


Elisa.


Como você sabe?


Só sei que é Elisa, assim como o seu é Ivan.


Ela pareceu aborrecida e correu pro banheirinho, seu antigo esconderijo. Dessa vez bati na porta, desculpa, desculpa, não pergunto mais. Ela abriu, estava nua de novo, o vestido jogado no chão, me chamou para dentro. No outro dia, acordamos felizes, vou trabalhar, mas volto logo, por que você não vai dar uma volta?


Vou.


Me arrependi. Disse: tome cuidado, não vá muito longe. E saí preocupado. Na hora do almoço voltei correndo, ela não estava. Sai pelo bairro vasculhando bancas de jornal, o balancinho da praça, as vitrines das lojas, nada. Ir para a polícia? Nome da sua esposa: Elisa. De quê? Não sei.


Voltei para casa, a TV ligada, o som alto, ela na cozinha preparando o almoço, oi, meu amor.


Onde você estava?


Fui ver o sol.


Comemos em silêncio, nos amamos em silêncio, fui para o trabalho à tarde, mas voltei dez minutos depois. Ela tinha saído. Sentei no sofá e esperei, três, quatro, sete e meia ela chega, oi, amor, você voltou mais cedo? Espera que eu já preparo sua comidinha.


Não reclamei, sentamos pra comer, conversamos, ela estava animada: tinha andado até o centro, pegara um táxi, fizera compras, me trouxe uma gravata, está aqui, tinha esquecido.


Naquela noite ela dormiu rápido, disse que estava cansada, vamos deixar para amanhã. Levantei de madrugada, vasculhei sua bolsa, cheirei seu vestido, não encontrei nada, me estiquei no sofá. Às nove acordei com o telefone, tinha perdido a hora, ela também:


Alô, a Susana está?


Não tem nenhuma Susana aqui.


Mas ela me deu esse número. Me chama ela.


Bati o telefone, fui até o quarto, ela acordou com o meu barulho, que horas são, amor?


Ligaram perguntando por uma tal de Susana.


Susana? Deve ter sido engano.


Deve ter sido.


Dei-lhe um beijo, saí sem o café. Do serviço liguei. Nada, ninguém. Voltei para casa. Vazia. Sentei no sofá, ela chegou as duas, ué, você não falou que vinha almoçar em casa...


Onde você andou?


Fui passear, querido. Fico tão sozinha.


Estava certa, pensei em arranjar uma ocupação para ela, curso de pintura, aula de computação, precisava conhecer gente, arrumar umas amigas, quem sabe gostaria de trabalhar?Mas eu tinha medo, ela ainda era ingênua, quase criança, as pessoas iriam rir, perguntar do seu passado, como assim chegou pelo correio? Na verdade nem tinha certeza se ela sabia ler.


Sei, claro. E também falo francês e um pouco de sueco. Mas não quero trabalhar ainda, prefiro conhecer a cidade, me dá dinheiro pra comprar um vestido que vi nos Jardins?


Não neguei, ela me deu beijo e perguntou o que eu queria almoçar.


Volta para o serviço ainda hoje?


Não. Quero ir com você ao cinema.




Ela sorriu, disse para eu tomar um banho, vou passar uma roupa para você sair bem bonito comigo. Liguei o chuveiro e escondido ouvi Elisa falando baixo no telefone. Não a surpreendi. Chorei no chuveiro, demorei, ouvi, vem, amor, a comida está esfriando, vamos tentar pegar a sessão das quatro e meia.


Não prestei atenção no filme, ela comeu pipoca, tomou refrigerante, interrompi: com quem você falou no telefone enquanto eu tomava banho?


Pelo visto você não tomava banho.


Não importa. Quem era?


Engano. Uma mulher perguntando por um tal de Paulo.


O filme continuou, acabou, voltamos para casa, não minta para mim, quem era no telefone?


Engano, já falei. Você está duvidando de mim?


E se trancou chorando no banheirinho. Bati, implorei, me perdoe, eu morro de ciúmes de você. Ela abriu, disse, vou tomar banho, estou triste. Tomou e foi dormir.


No dia seguinte bebi um café requentado na pia, saí pro trabalho, ela dormindo. Mas não fui, fiquei por ali, escondido. Às nove e meia ela saiu, linda no vestido novo. Segui. Ela se encontrou com um fulano, se beijaram na boca, andaram de mãos dadas num parque, tomaram sorvete. Ele passou a mão pelos seios dela, ela mordeu-lhe a língua. Se despediram, Elisa voltou para casa.


Demorei, andei perdido, à noite cheguei, a mesa posta, sorriso posto, oi, amor, demorou hoje.


Não falei nada, recusei seu beijo, ela me serviu, comi calado. Elisa comentando a novela. Ela me ofereceu sobremesa, rasguei sua roupa, violentei-a no chão da sala, enforquei Elisa com o fio do telefone. O interfone tocou, o porteiro me chamando, tem encomenda pro senhor, quer que eu leve?


Não, vou buscar.


Fui e voltei com o pacote, sem remetente. Abri.


Na sala, enquanto o corpo dela se desbotava no sofá, dentro da caixa pulsava um coração sangrento.


Mas pouco a pouco ele foi enfraquecendo, batendo mais lento, lento, suspirando, sussurrando.


Até que parou e morreu. Ali, na palma da minha mão.

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